Irmã Rita, a doce missionária da Igreja Saint James está de volta ao Brasil e deixa um grande vazio entre os amigos que conquistou nos muitos anos que integrou esta comunidade, como amiga, como mulher valente lutadora pelos direitos sociais do imigrante, líder comunitária ou apenas ouvinte dos enormes problemas comuns nesta sociedade. Tomei a iniciativa de entrevistá-la e compartilhar com todos um pouco da vida desta mulher que tanto amamos e de quem teremos infinitas saudades.
Vera Reis : Irmã Rita, de que lugar do Brasil você vem? Como é sua familia ?
Irmã Rita : Nasci no interior de uma pequena cidade do RS, chamada Cerro Largo. Meus pais tiveram sete filhos, seis mulheres e um homem, eu sou a segunda mais velha.
VR - Com que idade decidiu ser freira e por que ?
IR: Desde pequena eu participava da vida da Igreja, e quando era adolescente integrei o grupo de jovens, gostava de participar de reuniões, festinhas sociais e congressos de juventude, enquanto várias amigas estavam mais interessadas em bailes e namorados. Eu tinha muitas amizades e até namorava mas ninguém em especial. Um dia conversei com uma irmã e através dela conheci a Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, fundada por uma austríaca chamada Bárbara Maix, que no ano passado foi Beatificada no Brasil. Foi durante vários anos, estudando, trabalhando e convivendo com as Irmãs que senti que este estilo de vida combinava comigo, que me fazia feliz, e assumi o compromisso. Hoje muitos anos já se passaram e eu sou demais agradecida a Deus por ter me sustentado nesta vocação.
VR - Como foi a decisão de vir morar nos USA ?
IR - Em 1993 e 1994, já freira há vários anos, eu fui missisonária no Haiti. Foi no tempo do golpe militar comandado pelo general Raúl Cedras, quando o ex presidente Aristide estava exilado aqui nos EUA. Minhas companheiras religiosas e eu trabalhávamos num lugar muito pobre no interior do Haiti e lá seguidamente recebíamos missionárias/os americanos. Elas/eles falavam muito pouco o creóle haitiano e assim nossa comunicação tornava-se limitada. Comecei a sentir uma vontade imensa de aprender inglês mas neste tempo minha mãe faleceu e meu pai ficou muito doente, então regressei ao Brasil. Durante estes anos no Brasil cursei Teologia e em uma das matérias,“teologia feminista’, citava-se frequentemente autoras americanas, mas alguns dos livros interessantes não estavam traduzidos. Quando conclui o curso de Teologia meu pai também já tinha falecido, então pedi às responsáveis da minha congregação para antes de regressar ao Haiti estudar inglês por um ano.
VR – Onde/quando foi sua chegada e como foi seu começo por aqui ?
IR: Cheguei em Miami, FL, no dia 10 de fevereiro de 1999. Fui acolhida por dois padres brasileiros, amigos de amigos, pertencentes a uma ordem religiosa (Escalabrinianos) que tem como carisma trabalhar com os imigrantes. Eles serviam várias comunidades brasileiras na Flórida: Pompano Beach, West Palm Beach, Miami, Kendall. Eu pensava que sabia um pouquinho de inglês mas que nada! Quando saia na rua sozinha que insegurança se alguém falasse comigo! Até pra ir ao correio era difícil Que luta!
VR – Como se virou com a dificuldade do idioma ?
IR: Logo que cheguei me matriculei em uma escola de inglês em Forth Lauderdale, FL e também comecei a atuar nas comunidades brasileiras junto com os padres. Tinha muito trabalho pastoral, ajudei organizar a catequese, lembro que a Igreja em Pompano estava sempre cheia de brasileiros e nós só dispunhamos do salão nos sábados a tarde, mas tinha 30 turmas de catequese, então era um desafio enorme formar catequistas e atender tantas crianças! Mas o ano de 1999 passou rápido e em contato com tanto brasileiro o meu inglês continuava pobre. Pedi então mais um tempo às Irmãs do Brasil e a convite de um padre brasileiro, superior provincial dos Escalabrinianos, vim trabalhar num Centro de Serviços Imigratórios e Pastorais em Nova Yorque, na Rua 44. Ali atuei vários anos e aprendi muita coisa sobre o mundo dos imigrantes neste país. Como eu morava com religiosas americanas o meu inglês deslanchou, e fui aceita para cursar mestrado em Sociologia na St. John’s University.
VR– E como chegou em Newark?
IR: A convite do padre Clemente e da Arquidiocese de Newark em setembro de 2004 eu vim para a Igreja Saint James, para atuar na parte social junto a comunidade brasileira. Acho que foram meus melhores anos nos EUA. Não que não tenha gostado antes, todas as etapas neste país foram riquíssimas para mim, mas quando cheguei aqui em Newark eu já tinha aprendido muito sobre a vida dos imigrantes na América, entendia algo sobre leis imigratórias americanas, tinha muitos contatos e mais condições de servir, além de já ter concluído o mestrado. A economia ainda estava boa nesta época, havia uma forte esperança de legalização e dezenas de brasileiros chegavam todas as semanas na comunidade.
VR - Qual seu envolvimento com a comunidade ?
IR - Eu sempre procurei estar perto, ouvir, participar com o povo nas lutas e festas, dentro e fora da Igreja, buscando também parcerias com outras organizações que atuam junto aos imigrantes. Procurava descobrir serviços, acessos, oportunidades...aos imigrantes nas questões de trabalho, saúde, imigração.... principalmente para os indocumentados e sem domínio do inglês.
VR - O que mais gostou aqui, o que mais lhe deu prazer?
IR- O que mais gostei e me deu prazer foi a convivência, a amizade, as relações com as pessoas. Conheci tanta gente boa! Aqui conheci brasileiros de muitos estados e principalmente de Minas Gerais. Amei este espírito alegre, generoso, festeiro e amigo do povo mineiro, uai! Que saudades já sinto!
VR - O que menos gostou .. por que ?
IR - O que menos gostei e me causa dor é esta demora, cansaço que este país está dando aos imigrantes em relação a uma oportunidade de legalização. Ouvi muitas, muitas histórias de heroísmo e dignidade de minhas irmãs e irmãos brasileiros, mas tem uma que sempre salta na memória. Em uma das minhas visitas no Centro de Detenção em Elizabeth, uma jovem me contou que tentou várias vezes o visto americano, pois ela desejava tanto reformar a casa da sua mãe idosa e viúva, mas no Brasil não conseguia trabalho. Penhorando $10 mil ela entrou pelo México e trabalhou 7 dias por semana no primeiro ano (cinco de faxineira e dois de baby sitter) para pagar a dívida. Nos dois anos seguintes ela trabalhou para reformar a casa da mãe, mas numa manhã, indo para o trabalho com duas colegas, foi pega pela imigração. Por detrás de um vidro, no telefone, ela me contou sua história com tanta coragem, tranquilidade e fé! Não percebi mágoa, nem revolta, pelo contrário, estava agradecida a Deus por tudo. Somente quando falou da maneira que foi levada para a prisão a sua voz embargou. Disse ela: “Fui algemada. Será que me levarão para o aeroporto algemada também?”
VR - Por que voltar ao Brasil ? De quem é a decisão?
IR - Como todos os imigrantes que vem para cá, ou a maioria deles, eu não vim para ficar. Foi por um ano. Para aprender inglês. O tempo foi passando e sempre tinha uma outra razão válida para ficar. A gente vai se apegando e agora já fazem quase 13 anos! Aprendi tanto aqui! Gosto mesmo daqui, mas faz dois anos que eu comecei a sentir dentro de mim um apelo mais forte de voltar. Minha família religiosa está no Brasil e assim minha família de sangue. Um dia eu teria que voltar e quanto mais temp a gente fica, mais difícil sair. A saudades aperta o coração, mas acho que nós sempre teremos que conviver com ela, pois passamos a vida toda encontrando e nos separando de pessoas queridas. Outro dia li um pensamento sobre isto (não lembro de quem): “Sentimos saudades não porque estamos longe, mas porque um dia estivemos perto.” Ainda bem que a tecnologia nos permite uma fácil comunicação nos dias de hoje.
VR – Como será sua vida lá no Brasil, o que pretende fazer ?
IR: Ainda não sei bem. Certamente até o final do ano terei um tempo para conviver com a família, meu único irmão está lutando pela saúde, e me readaptar a nova realidade. Depois ficarei à disposição da minha congregação religiosa, sei que minhas companheiras estão esperando por mim para ajudar nos trabalhos e projetos assumidos no Brasil. Acredito que residirei em Santa Maria, RS.
VR - O que mais vai se lembrar daqui?
IR: Com certeza do calor humano, acolhida e amizade de tanta gente boa com quem partilhei a vida nestes anos. As experiências de lutas, alegrias, esperanças e sofrimentos dos imigrantes, especialmente o povo da Saint James e muitas pessoas que fizeram parte da minha história nestes anos. Continuarei torcendo e rezando para que aconteça o mais breve possível uma mudança de lei que permita às pessoas que querem ficar aqui de se legalizarem e viverem com liberdade e dignidade neste país, nesta região com tamanho contraste climático, frio e calor brutal, e outras coisas duras, mas que também tem tantas coisas boas e oferece muitas oportunidades.
VR - Pode acrescentar alguma informação, reflexão que julgar importante, mesmo que não tenha sido perguntado...
IR: Depois de tudo o que vi, vivi e ouvi durante estes anos de convivência com imigrantes muitas vezes me pego pensando, rezando e pedindo a Deus que nenhum povo, especialmente nosso povo brasileiro, tenha que sair do seu país por falta de oportunidades. Deixar sua pátria, as pessoas que ama, dividir a família, viver na ilegalidade, sem possibilidade de ir e vir, ter direitos básicos negados... só porque busca um trabalho que dê condições dignas de vida, de adquirir uma casa, de educar os filhos... Se alguém quiser deixar sua terra que o faça por razões como de aprender uma nova língua, de conhecer uma nova realidade/cultura, de aperfeiçoar um campo de interesse... Deus criou o ser humano para viver na liberdade e dignidade, com condições de sonhar e desenvolver suas potencialidades.